quarta-feira, 1 de março de 2017

Remédios homeopáticos causam danos a centenas de bebês, dizem familiares

Caso 7682299: 1 de agosto, 2010. Uma mãe dá a sua criança três pílulas homeopáticas para aliviar a sua dor de dente. Em minutos, o bebê para de respirar.
“Minha filha teve uma convulsão, perdeu a consciência e parou de respirar cerca de 30 minutos depois de eu ter lhe dado três Hyland’s Teething Tablets”, a mãe contou mais tarde ao FDA, órgão do governo norte-americano responsável pelo controle de alimentos e medicamentos. “Ela teve que receber respiração boca-a-boca para voltar a respirar e foi trazida para o hospital.”
A empresa, Hyland, promove “soluções seguras, efetivas e naturais para a saúde”, o que agrada pais procurando por tratamentos alternativos. Contudo, a agência logo ouviria muito mais sobre os produtos para dentes da Hyland. Funcionários do FDA considerariam o Caso 7682299 com um dos resultados de mais sorte.
Uma análise dos registros do FDA, obtida pela STAT através da Lei de Liberdade de Informação (FOIA, na sigla em inglês), mostram uma imagem bem mais cruel: bebês para os quais foram dados os produtos para dentição da Hyland pararam de respirar e morreram. Bebês tiveram repetidas convulsões. Bebês começaram a delirar. Bebês foram transportados por via aérea para o hospital, onde funcionários da sala de emergência tentaram descobrir o que havia feito suas pernas e braços começarem a ter contrações musculares.
Em um período de 10 anos, de 2006 a 2016, o FDA coletou relatórios de “eventos adversos” em mais de 370 crianças que haviam utilizado pastilhas homeopáticas ou gel, produto similar que é aplicado diretamente na gengiva do bebê, para dentição da Hyland. Registros da agência mostram oito casos nos quais há o relato de que os bebês morreram depois de tomar os produtos da Hyland, embora o FDA diga que ainda está analisando a questão quanto a eles terem causado essas mortes ou não.
(A agência ainda está investigando outras duas mortes ligadas a medicamentos para dentição, mas se recusou a confirmar a empresa responsável pelos produtos, ou a fornecer os relatórios dos casos.)
Seguindo um aviso de setembro do FDA, a Hyland disse que não produziria os homeopáticos para dentição. Porém, eles continuaram nas prateleiras de algumas lojas por meses e ainda estão disponíveis para comprar na internet. Provavelmente ainda são usados em casas por todo o país.
A Hyland, companhia privada de 114 anos localizada em Los Angeles, é a maior empresa de homeopáticos do país. Ela insiste que seus produtos são seguros e diz que o FDA falhou em demonstrar uma ligação científica entre eles e as convulsões e outras complicações em crianças.
“Isso não significa que crianças não possuam sensibilidade ao produto. Há muita sensibilidade nas crianças e devemos observar isso com cuidado”, disse uma porta-voz, Mary Borneman. “Não é algo que condene toda a linha de produtos.”
Por trás de cada caso do FDA, há pais bravos e, algumas vez, inconsoláveis. Mas uma investigação da STAT - e também a primeira observação detalhada nos relatórios - também levanta questões quanto à responsabilidade dos reguladores.
Demorou quatro anos para que o FDA fizesse a Hyland reformular seus medicamentos, em 2010. Nos sete anos que se seguiram, houve fluxo constante de relatos de eventos adversos ligados aos produtos homeopáticos para dentição da Hyland.
“O FDA poderia tomar medidas mais severas” disse Sarah Sorscher, advogada do Grupo de Pesquisa de Saúde sem fins lucrativos Public Citizen. “Mas ele não o faz. Quando chegamos ao ponto de ter crianças sendo hospitalizadas e mortes sendo registradas, é simplesmente inaceitável que a agência demore a tomar atitudes.”
Uma porta-voz do FDA defendeu a maneira como a agência está tratando a questão.
“É importante notar que enquanto relatos de eventos adversos nos dão alguma informação sobre um produto e danos sérios ou mortes relacionados ao uso de um produto em particular, eles frequentemente indicam situações as quais requerem análises adicionais e não são evidências conclusivas de um problema com o produto” declarou a porta-voz, Lyndsay Meyer.
Apesar da dificuldade do FDA em provar que os produtos da Hyland fazem mal a crianças, alguns médicos não têm dúvidas.
No caso 462749, de 15 de setembro de 2011, um médico enviou uma nota por escrito à Hyland, informando que seu paciente, uma menina de 5 meses, ficou sem resposta por 45 minutos depois de tomar uma de suas pastilhas. “Tenho certeza que não foi uma reação alérgica”, ele escreveu. “Eu gostaria de registrar isso e encontrar um contato no FDA, para que possamos começar uma investigação e tirar esse produto irregular e perigoso das prateleiras.”
Uma mãe escreveu à empresa para dizer que pupilas de seu filho dilataram “como esculturas com grandes olhos negros.” Outra mãe descreveu convulsões que sua filha teve após tomar as pastilhas e disse à companhia, “eu odeio, odeio, odeio vocês por isso.”
Uma empresa gigante em uma enorme indústria
Hyland e sua empresa-matriz, a Standard Homeopathy Co., são consideradas gigantes no mercado de homeopáticos. O CEO John P. Borneman vem de uma família que está no negócio há gerações e é presidente do grupo de indústrias que publica a Homeopathic Pharmacopeia, um sumário que serve como a bíblia do negócio.
A companhia vende dezenas de produtos para alívio da dor, estresse, problemas para dormir, alergias, gripe e outras doenças.
Como em todos os tratamentos homeopáticos, os produtos da Hyland são baseados em uma teoria na qual os pacientes podem se beneficiar de substâncias naturais extremamente diluídas que, em sua forma original, podem adoecer as pessoas.
Apesar da falta de evidências científicas sobre a efetividade dos medicamentos homeopáticos, eles são onipresentes.
A homeopatia se tornou uma indústria multibilionária. Seus produtos são sucesso de venda ao redor do mundo, e populares com pessoas como Cher e o Príncipe Charles. A indústria também tem influência política: ela conseguiu se isentar de diversas leis propostas pelo Congresso e o FDA no decorrer dos anos.
Diferente de medicamentos produzidos por empresas farmacêuticas, os homeopáticos não precisam provar que são efetivos em tratar nada em particular antes de serem comercializados. Fica a cargo do FDA determinar se eles não são seguros depois de já estarem no mercado - uma tarefa difícil, pois geralmente consideram que os relatos de eventos adversos representam apenas uma fração dos verdadeiros incidentes e que devem faltar informações suficientes para que hajam investigações.
“Se estou trabalhando na sala de emergência e uma família entra com uma crianças tendo convulsões, talvez eu não tenha meios de conseguir o histórico de uso de homeopáticos”, disse o Dr. Edward W. Boyer, toxicologista do departamento de emergência médica da Escola de Medicina de Harvard.
Algumas vezes, os pais assumem que produtos descritos como medicamentos naturais, como no caso das pastilhas e do gel da Hyland, não poderiam resultar em complicações e nunca mencionam o seu uso para os médicos. Sem evidências suficientes de um problema, o FDA não tem o que precisa para utilizar as ferramentas de execução que possui.
Para Karinna Talbott, uma mãe de 26 anos de Colorado Springs, o fato dos produtos para dentição da Hyland serem rotulados como “naturais” fez com que ela baixasse a guarda.
“Quando os dentes do nosso quarto filho começaram a aparecer aos três meses, nós pensamos ‘Tudo bem, o que podemos fazer para dar a ele algum alívio?’”, disse Talbott. “Alguém nos contou sobre as pastilhas para dentes e pensamos “Vamos dar uma chance a elas’.”
Pouco tempo depois de seu filho começar a tomar as pastilhas, ela disse, suas mãos começaram a ter contrações musculares.
“Não fizemos a correlação entre isso e as pastilhas”, Talbott disse. “E seus sintomas pioraram, indo para seus braços e pés. Às vezes, todos aconteciam ao mesmo tempo.”
Talbott disse que seu médico estava, a princípio, incerto sobre a causa. Mas quando pararam de dar as pastilhas ao filho, as convulsões também cessaram.
“O neurologista disse que talvez ele estivesse um pouco sensível aos produtos na pastilha”
“Beladona mortal”
Investigando os produtos para dente da Hyland, o FDA focou em um ingrediente chamado Atropa belladonna, uma erva coloquialmente conhecida como “beladona”.
Em forma diluída, não é esperado que a substância ofereça algum risco de saúde. Contudo, em 2010, inspetores do FDA que examinaram instalações da Hyland criticaram a empresa pelo baixo padrão em suas práticas de produção e encontraram níveis inconsistentes de Atropa belladonna nos produtos.
A agência emitiu uma aviso público, observando “relatos de sérios eventos adversos em crianças, as quais tomaram o produto, que são consistentes com toxicidade de belladonna”.
Ele também dizia que “crianças são muito suscetíveis à neurotoxicidade de medicamentos” devido a como o corpo distribui e responde a eles, além de observar que “a absorção de belladonna pela pele e pela boca foi bastante rápida.”
A companhia voluntariamente tirou os produtos das prateleiras e concordou em reformulá-los, embora tenha insistido que eles eram seguros.
“Sentimos que era a coisa certa a fazer, assim os pais não precisariam ficar preocupados com o produto”, disse Borneman, a porta-voz.
Contudo, o número de eventos adversos sérios conectados, pelo FDA, aos produtos continuou a crescer. Alguns pediatras e neurologistas concluíram que as pastilhas e o gel eram a causa. Muitos pais escreveram ao FDA, perguntando acusadoramente por que as pílulas continuavam no mercado.
“Meu filho tomou 3 das Hyland’s Teething Tablets”, uma mãe contou ao FDA no dia 13 de fevereiro de 2012, observando que o produto parecia ser a causa de diversas convulsões. “Estou chocada com a popularidade desse produto, que continua a crescer, e a falta de informações entre os pais, além da falta de avisos nos rótulos. Pais precisam desesperadamente serem avisados sobre esse produto se ele continuar nas prateleiras!!! Por favor, façam algo!”
Em setembro de 2016, o FDA anunciou que estava investigando mais relatos de eventos adversos e recomendou que os consumidores parassem de usar homeopáticos da Hyland e outras marcas que possuíssem. Algumas lojas, incluindo a Target e a CVS, que vendiam esses produtos, tiraram-nos das prateleiras, em resposta.
O FDA também pediu a Hyland que fizesse um recall de seus produtos novamente. Porém, dessa vez, a empresa resistiu e a agência não possui autoridade para forçar a retirada de produtos homeopáticos de circulação.
Borneman disse que o “programa de vigilância farmacológica” da companhia, um sistema de análise de segurança dos produtos lançado depois de 2010, oferece provas de que os tratamentos são seguros.
“A medicina homeopática tem uma grande margem de segurança”, ela disse. “Nossos testes garantem que não há belladonna demais em nenhuma garrafa” de pastilhas.
Aos mesmo tempo, a empresa decidiu parar de produzir as pastilhas para dentição. Em uma carta aberta aos consumidores, a Hyland disse que o aviso do FDA “criou confusão entre os pais.”
“Colocá-lo em uma posição na qual precisa escolher em quem confiar em face a uma informação contraditória é opressivo e enfraquece o FDA”, disse a companhia, enquanto insiste que os produtos da Hyland, “incluindo aqueles os quais você já possui, são seguros para uso.”
Muitas semanas depois, em 27 de janeiro, o FDA emitiu outro aviso, dizendo que análises laboratoriais das pastilhas para dente da Hyland encontraram níveis de belladonna “algumas vezes excedendo demais a quantidade indicada no rótulo.” A agência aconselhou os consumidores a não utilizar os produtos e a procurar por cuidados médicos imediatamente se seus filhos tiverem convulsões, dificuldades para respirar, letargia, fraqueza muscular ou outros problemas após tomar remédios homeopáticos para dentição.
O FDA também disse que não há evidências de que os produtos realmente funcionem.
Falhas na autoridade do FDA
Com preocupações sobre os níveis tóxicos de belladonna, e o número de casos de eventos adversos, alguns críticos - e pais - dizem que o FDA deveria ter sido mais rápido no caso da Hyland.
Contudo, também reconhecem que o episódio mostra falhas no poder regulatória da agência em relação aos produtos homeopáticos. Não existe uma fórmula matemática ou padrão oficial que diz quantas crianças doentes devem ser relatadas antes do FDA confiscar o inventário de uma empresa, impor multas ou fechá-la.
Críticos dizem que o fato de os homeopáticos geralmente serem bastante diluídos os deixou em “banho-maria” no FDA.
“Isso está em uma posição bem baixo na lista de prioridades deles”, disse o doutor Aaron S. Kesselheim, co-autor de um artigo sobre o assunto no New England Journal of Medicine no ano passado. “Por um bom tempo, o FDA apenas adiou o assunto dos homeopáticos, pois eles são basicamente inertes e bastante diluídos. O dano vem de pessoas gastando seu dinheiro, ou se desviando de coisas que realmente funcionem.”
No caso de alguns produtos da Hyland, entretanto, Kesselheim acredita que os níveis tóxicos de belladonna mostram um problema de segurança substancial, colocando no FDA a responsabilidade de responder.
Um dos problemas do FDA nessa questão é em matéria de pessoa: a agência tem um oficial médico que revisa cada um dos relatos dos fabricantes, mas não possui alguém que rotineiramente possa acompanhar o paciente, a sua família ou seu médico para encontrar registros necessários para tomar uma ação séria.
“É justo criticar o FDA pelo atraso entre 2010 e agora?” diz Patricia Zettler, antiga conselheira do FDA e professora associada de Direito na Universidade Estadual da Georgia. “Eu acredito que a agência está em uma posição complicada, com esses tipo de produtos e relatos de eventos adversos, no geral. Eles não são necessariamente um indicativo perfeito de que algo está acontecendo com o medicamento.”
“Dito isso”, Zettler adicionou, “não parece que esse seja um produto com o qual a agência esteja preocupada. É difícil analisar se dois relatos de convulsões deveriam ser o bastante, ou dois, ou dez. Existe um balanço que a agência deve atingir entre agir rapidamente com informações seguras e não ter uma reação exagerada com algo que talvez não seja realmente causado pelo produto.”
Sorscher, do Public Citizen, disse que casos criminais levam anos para prosseguir, então o FDA preferiria uma concordância voluntária.
“Eles não possuem um mecanismo para dizer ‘esse ingrediente não é seguro, ninguém deveria vendê-lo’”, ela explicou. “Talvez seja a hora para o Congresso dar ao FDA um padrão e dizer, vocês podem emitir um regulamento falando que ninguém pode mais fazer isso.”
Ultrajado pelo impasse entre FDA e Hyland, a representante democrata de Connecticut Rosa De Lauro introduziu um projeto de lei chamado Lei de Recolhimento de Medicamentos Perigosos. A proposta daria autoridade mandatória ao FDA para recolher produtos e medicamentos homeopáticos.
“A recusa da Hyland em fazer recall de suas pastilhas de dentição, mesmo com os numerosos avisos do FDA sobre saúde e segurança, é vergonhosa”, disse DeLauro, adicionando que a companhia “está escolhendo priorizar seus lucros e reputação ao invés da segurança de nossas crianças.”

“Da maneira que está, o FDA teria que começar um árduo processo legal contra fabricantes como a Hyland. Isso é inaceitável e ameaça a saúde e a segurança de família americanas”
Para os pais do Caso 10723317, qualquer ação viria tarde demais. Uma mão relatou que, no dia 9 de julho de 2014, sua filha de 9 meses morreu após tomar duas pastilhas para dentição, partidas, pela primeira vez. Ela deu à sua crianças as pastilhas, uma mamadeira e depois a deixou dormir. Quando foi checá-la 45 minutos mais tarde, a filha estava morta em seu berço, ao lado de uma poça de vômito.
Cinco meses mais tarde, após ler relatos online sugerindo que bebês podem ter convulsões após tomar belladonna, ela entrou em contato com a Hyland.
“O consumidor não pediu um ressarcimento ou troca”, observou o funcionário da Hyland que preencheu o relatório com o FDA. A empresa ainda disse que não foi possível testar a garrafa, pois o consumidor a jogou fora.
“Devido à informação limitada fornecida, nenhuma investigação futura sobre esse incidente é possível no momento”, a companhia concluiu.



Sheila Kaplan, STAT. Ike Swetlitz contribuiu com relatórios.

Republicada com a permissão da STAT.

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