POR MÍRIAM LEITÃO
A lama não será tirada do epicentro da tragédia. É irreversível. Não é possível limpar o local onde a maior parte da lama despencou. O rio vai demorar anos a se recuperar do golpe, se um dia o conseguir. O povoado que seria reconstruído ainda não o foi. As empresas alegam que depositaram recursos suficientes num fundo, mas que o processo é lento mesmo. As pessoas atingidas têm que viver todos os dias com os efeitos da tragédia, e o provisório. Os índios Krenak enfrentam desdobramentos inesperados, como a mudança de seus hábitos e rotinas, porque agora, em vez de pescar, recebem dinheiro. Desde a chegada dos não índios no Vale do Rio Doce, os Krenak resistiram preservando sua cultura. Hoje, isso se desfaz.
Foi crime. A Vale, a BHP e a Samarco, controlada de ambas, são empresas de mineração e sabem que a atividade é altamente agressiva ao meio ambiente. Por isso, deveriam ter planos de contingência, deveriam ter cuidado redobrado. E não tiveram. Decidiram que o rio e a sua gente correriam riscos. O rio e sua gente não sabiam dos riscos que corriam, mas os administradores das empresas, sim.
Vale e BHP não se bicam e são sócias. Cada uma tem a metade exata das ações. Resultado: nenhuma das duas assumiu a administração da Samarco e a empresa virou terra de ninguém. Se são donas, são responsáveis. A governança da empresa, por ter essa composição de capital, ficou frágil e deficiente. Todos eles sabiam. E assim ficava. Fingiam não ver que isso poderia levar a um desastre.
Há muito as grandes empresas de mineração sabem que precisam evoluir no tratamento que dão aos rejeitos. Já há tecnologia disponível. Portanto, o que elas não viram no reservatório de Fundão foi por cegueira deliberada. O Brasil tem aprendido o que é esse conceito nas sentenças que condenam os responsáveis por corrupção.
O combate à corrupção tem ensinado muito ao Brasil. O Direito, que é prisioneiro de excessivos formalismos, muitas vezes mantém impunes os responsáveis por crimes. Houve ações de investigação que levaram a processos interrompidos por advogados por algum pequeno detalhe formal. E, com isso, a ação era anulada. Bastava, portanto, ter um bom advogado que ele procuraria o defeito no processo. Não se fala aqui de grandes ilegalidades que devem derrubar as ações, mas sim de filigranas jurídicas. O juiz de Ponte Nova acha que, se a escuta foi além do que estabelecia a ordem judicial, todo o processo pode ser suspenso, sob risco de anulação. O Ministério Público disse que não houve essa interceptação telefônica excedente. Mas, se tiver ocorrido, há alternativas, como a de não considerar qualquer prova decorrente do prazo excessivo de escuta. Mas ele preferiu suspender o processo e falar em risco de anulação.
Imagine se por um atraso na suspensão de uma escuta for anulada a ação criminal sobre o maior desastre ambiental do Brasil, e com vítimas fatais? Que informação estaremos passando? A de que empresas irresponsáveis podem continuar fazendo o que fazem contra a vida humana e a integridade do meio ambiente.
O Código de Mineração enviado ao Congresso pelo governo não obriga as empresas a fazerem plano de contingência e a contratarem seguro. No governo Dilma, o projeto de lei proposto antes da tragédia de Mariana também não tinha essa exigência e, na época do rompimento da barragem, tudo estava se encaminhando para que o relatório do deputado Leonardo Quintão desse mais direitos às mineradoras, em vez de proteção à população. Dois anos depois da tragédia, o que as empresas querem de novo é menos custos, mesmo que à custa de mais riscos para o país e seu meio ambiente.
Se o Brasil não punir os responsáveis pelo desastre de Mariana e ainda fizer um código de mineração que proteja as empresas, e não o seu povo, é porque escolheu repetir a tragédia de Mariana. É uma escolha. A pior delas.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)
Nenhum comentário:
Postar um comentário