sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Por que o Brasil não pune corrupção privada

José Maria Marin caminha em calçada de Nova York. Um microfone da imprensa no canto da foto.

EX-PRESIDENTE DA CBF, FOI RETOMADO EM NOVA YORK Dois ex-dirigentes de peso do esporte brasileiro estão se defendendo na Justiça estrangeira de acusações de participação em esquemas criminosos: José Maria Marin, ex-presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol), e Carlos Arthur Nuzman, ex-presidente do COB (Comitê Olímpico do Brasil). Um caso envolve a Justiça dos Estados Unidos, e outro, a da França. Em ambos há suspeitas de que os dirigentes participaram de pagamentos de propina, mas as defesas de Marin e Nuzman se esquivam das acusações de corrupção privada, estranha à legislação brasileira. O que diz a lei brasileira A corrupção privada não está tipificada no Código Penal Brasileiro. Em outras palavras, não é crime. Ou seja, se, por exemplo, um empresário paga propina a outro empresário a fim de facilitar contratos ou negócios, ele não está cometendo crime. A CBF e o COB são entidades privadas. A lei brasileira estabelece que o crime de corrupção existe somente contra a administração pública, envolvendo algum agente público. Isso inclui chefes do Executivo, parlamentares, ministros, empresários que atentem contra o dinheiro público, diretores de empresas estatais, entre outros. Um projeto de lei que inclui o crime de corrupção privada no Código Penal está tramitando no Congresso. A proposta está parada no Senado desde dezembro de 2016, no aguardo de um relator na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça). Para valer, o projeto ainda teria que passar na votação da comissão e depois ser aprovado no plenário do Senado e no plenário da Câmara. Esse projeto de lei foi apresentado pela CPI do Futebol, que investigou justamente a CBF, dirigentes e contratos da instituição. A comissão de inquérito no Senado terminou em dezembro de 2016, sem nenhum pedido formal de indiciamento. O projeto do Novo Código Penal, apresentado em 2012, institui a corrupção privada, chamando-a de “corrupção entre particulares”. Ele também está tramitando na CCJ do Senado. O Código Penal atual data de 1940, embora tenha recebido diversas modificações ao longo das décadas. O caso da CBF O julgamento de Marin foi retomado nesta segunda-feira (13), em Nova York. Ele é acusado pela Justiça americana de fraude, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Uma das suspeitas é que Marin recebia dinheiro e, em troca, facilitava que determinadas empresas de marketing esportivo fechassem contratos com a CBF e fossem favorecidas na transmissão de campeonatos como a Copa Libertadores e a Copa do Brasil. Nos Estados Unidos, corrupção privada é crime. Um dos argumentos da defesa de Marin é que esse crime não existe no Brasil, portanto não pode ser julgado por ele. Nos últimos anos os Estados Unidos passaram a investigar esquemas internacionais de corrupção na Fifa (Federação Internacional de Futebol) e entre os dirigentes do esporte, pois os suspeitos estariam usando o sistema financeiro americano e envolvendo também o futebol do país, portanto seria um assunto para a Justiça dos EUA atuar. Marin e outros sete dirigentes do futebol mundial foram detidos em maio de 2015, quando estavam na Suíça, e desde novembro daquele ano o brasileiro está em prisão domiciliar em seu apartamento em Nova York. Também são acusados no mesmo processo Ricardo Teixeira, chefe da CBF por 23 anos e antecessor de Marin, e Marco Polo Del Nero, atual presidente da confederação. Os dois estão no Brasil, que não extradita cidadãos brasileiros para julgamentos em outros países. Teixeira também é acusado de receber propina milionária para fechar um contrato da Nike com a seleção brasileira em 1996. Marin, Teixeira e Del Nero negam as acusações. Os dois últimos deixaram de viajar para o exterior, onde podem ser detidos. O caso do COB FOTO: BRUNO KELLY/REUTERS - 20.10.2017 NUZMAN FOI SOLTO EM 20 DE OUTUBRO, APÓS FICAR 15 DIAS PRESO Nuzman também usa o argumento de que corrupção privada não é crime no Brasil a fim de se esquivar das acusações de que esteve envolvido em um esquema de compra de votos para o Rio de Janeiro ser eleito sede olímpica pelo COI (Comitê Olímpico Internacional), em 2009. No caso, a Justiça brasileira trabalha em conjunto com a Justiça francesa. Na França, como em boa parte dos países europeus, corrupção privada é crime. Nuzman deixou o cargo depois de ser preso, em outubro de 2017, após 22 anos chefiando a instituição. Segundo a investigação, foi feito um pagamento de US$ 2 milhões pelo empresário brasileiro Arthur Soares ao senegalês Lamine Diack, então principal dirigente do atletismo mundial. Em referência à acusação de corrupção privada pela Justiça francesa, a defesa de Nuzman declarou que “não se pode prestar vassalagem a pretensões alienígenas” e que o Brasil “não é colônia nem possessão francesa”. Portanto, estando em solo nacional, Nuzman não poderia ser alvo dessa acusação. Ao contrário do caso da CBF, no qual o processo corre apenas no exterior, o esquema envolvendo Nuzman tem a participação da Justiça brasileira. O Ministério Público denunciou o ex-presidente do COB por organização criminosa, lavagem de dinheiro, evasão de divisas e corrupção passiva. Essa última acusação se baseia no envolvimento de Sérgio Cabral (PMDB), então governador do Rio de Janeiro e, portanto, um agente público, na suspeita de compra de voto. Nuzman nega as acusações e cumpre medidas cautelares, depois de ter ficado 15 dias preso. ‘É uma lacuna normativa’ O Nexo perguntou a Alamiro Velludo Salvador Netto, professor de direito penal da USP (Universidade de São Paulo), quais as razões para a corrupção privada não ser um crime previsto na legislação brasileira. Por que a corrupção privada não é crime no Brasil? ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO É uma razão histórica. Sempre que se falou de corrupção, foi um fenômeno atrelado à administração pública. Em que pese essa palavra, “corrupção” (é uma palavra polissêmica, se fala que um árbitro de futebol é corrupto, por exemplo), juridicamente falando, se trata da relação entre [entes] privados e administração pública. Daí a dicotomia: corrupção ativa, que é a prática do privado, e corrupção passiva, que é a prática do agente público. A partir dos anos 1990, começa a se perceber que muitas empresas passam a assumir — no âmbito da privatização, do estado neoliberal — funções que antes competiam à administração [pública]. Concessionárias de serviço público, empresas que administram áreas que seriam da administração pública. Nesse momento começa a nascer o discurso da corrupção privada. Ou seja, existem determinados ambientes que, em que pese serem privados, se precisa de um controle porque, de certa forma, se atos ilícitos são cometidos, eles atacam uma grande quantidade de pessoas. A partir daí, começamos a ver um crescimento gradual nos países europeus desse discurso [contra a corrupção privada], e a legislação vai assumindo a possibilidade da corrupção privada. No Brasil, ainda não temos algo dessa índole, não há a corrupção privada. Hoje em dia, a grande maioria dos países europeus estabelece a corrupção privada. Casos entendidos como de corrupção privada podem ser enquadrados como crimes previstos no Código Penal? ALAMIRO VELLUDO SALVADOR NETTO A corrupção privada em si é um fato atípico. O que eu poderia imaginar é: um empregado de uma empresa faz uma contratação prejudicial à empresa, com a finalidade de obter alguma vantagem, talvez isso se configuraria como um estelionato, quase uma administração desleal. Mas objetivamente é muito difícil, porque não temos essa modalidade [de corrupção privada]. O ato corrupto que estamos identificando genericamente como corrupção privada é indiferente para o direito penal, é uma lacuna normativa. ESTAVA ERRADO: A versão inicial deste texto informava que Carlos Arthur Nuzman, após ser solto da cadeia, estava cumprindo prisão domiciliar, mas na verdade ele cumpre outras medidas cautelares. O texto foi corrigido às 17h53 do dia 14 de novembro de 2017.

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