“Desde que surgiu no cenário da vida pública brasileira no fim do Estado Novo, a tecnocracia teve sua importância mantida em ritmo crescente, sendo acompanhada pela contínua desvalorização da política e dos políticos profissionais. Enquanto a política se tornava incapaz de atrair os bem formados e bem-intencionados — ‘los mejores’, na expressão do filósofo e ensaísta José Ortega y Gasset —, os canais tecnocráticos de acesso ao poder ficavam cada vez mais rápidos e atraentes. Sobretudo desde o regime militar, jovens macroeconomistas bem formados, ainda que sem qualquer experiência de vida pública, tiveram oportunidades excepcionais de participar do governo brasileiro em posições destacadas.
Em um artigo recente, o cientista político Bolívar Lamounier se pergunta por que os economistas não substituíram os advogados nos quadros da política representativa e por que os economistas não se interessaram em ocupar o espaço deixado pelos advogados como a principal profissão de acesso à vida pública. A resposta é que, para os economistas, o acesso pela via tecnocrática tem sido incomparavelmente mais rápido e mais eficaz.
A qualificação técnica de economista dá hoje acesso a quase todas as áreas do governo, mas é nos bancos centrais que ela é monopolística, não sofre concorrência de políticos de carreira nem de outro profissional sem formação técnica macroeconômica. É também nos bancos centrais que o poder dos economistas está menos sujeito a questionamento e deve menos satisfação às diversas instâncias da democracia representativa.
A diretoria do Banco Central tem grande autonomia, não apenas em relação ao Legislativo como também em relação ao Poder Executivo e ao próprio Ministério da Fazenda, ao qual está subordinada. A legitimidade para continuar a dispor do poder de que dispõem os macroeconomistas do Banco Central, assim como a própria reivindicação de autonomia dos bancos centrais, depende essencialmente da ideia de que a política monetária tem sólidos fundamentos conceituais, inacessíveis aos que não têm formação especializada.
Não há dúvida de que a interferência política espúria pode ter sérias consequências para a condução da política monetária. A autonomia operacional dos bancos centrais e sua separação em relação ao Tesouro Nacional na divisão de trabalho para a gestão da dívida pública faziam sentido enquanto os balanços dos bancos centrais eram pequenos em relação ao orçamento fiscal e à dívida pública.
Hoje, praticamente em toda parte, isso já não é mais verdade. Nos últimos anos, sobretudo depois da crise financeira de 2008 nos países desenvolvidos, a linha demarcatória entre as políticas monetária e fiscal ficou bem menos nítida com o advento do quantitative easing (programa de compra de títulos de governos em poder dos bancos) e com a política monetária passando a ser conduzida primordialmente por meio da taxa de juro nas reservas bancárias.
Quando os bancos centrais passam a operar por meio de reservas remuneradas, assumindo para si valores expressivos em relação à dívida pública, e têm liberdade para comprar ativos financeiros privados, a política monetária se torna um dos componentes da política fiscal. Fica comprometida a defesa da autonomia dos bancos centrais, assim como a tese de que a política monetária é assunto técnico, no qual não cabem escolhas políticas.
A última trincheira da defesa da autonomia dos bancos centrais passa a ser, então, a complexidade técnica e os sólidos fundamentos conceituais que devem pautar a política monetária. Talvez seja essa a razão pela qual, mais do que nunca, haja necessidade de blindar a teoria monetária de seus críticos, de transformar suas premissas e corolários em dogmas, de certificar-se de que as críticas aos fundamentos não extrapolem as fronteiras da academia.
A defesa da ortodoxia monetária tem longa tradição acadêmica e política. Mesmo quando diante de recorrentes fracassos práticos, como no caso do combate à inflação crônica, insistiu-se sempre em preservar a teoria e culpar a falta de vontade política de seguir a cartilha. Quando a revisão se tornou imperativa, como no fim dos anos 90, com a substituição da moeda pela taxa de juro como a variável exógena dos bancos centrais, a saída foi pretender que não houvesse uma revolução conceitual, e sim apenas uma evolução sem perda de continuidade da teoria.
No Brasil, desde os anos 50, com Eugênio Gudin (economista e ex-ministro da Fazenda) e seus discípulos, a tentativa de estabilizar a inflação crônica por meio da contração do crédito e da liquidez, conforme recomendava a ortodoxia, provocou crises bancárias, desemprego e recessão, sem derrotar a inflação. Foi também provavelmente um fator importante para a derrota política do liberalismo ilustrado. No longo prazo, portanto, seu custo pode ter sido ainda mais alto. Tudo o que o liberalismo ilustrado de Gudin acertadamente propunha ficou comprometido pelos resultados traumáticos de sua equivocada ortodoxia monetária.
Mudaram-se os tempos, a teoria foi revista a contragosto, mas o apego à ortodoxia monetária continua tão forte quanto antes. Hoje, a ortodoxia já não dita regra para o controle dos agregados monetários, mas para a taxa de juro. Assim como no passado a desastrada tentativa de aplicar regras rígidas de controle da moeda e do crédito diante de um processo inflacionário crônico, nas últimas duas décadas a insistência em aplicar uma nova ortodoxia, agora baseada numa regra para a taxa de juro, pode ter causado danos mais graves do que se aparenta.
A moeda é uma convenção social. As questões monetárias são, portanto, indissociáveis dos costumes, das instituições e da tecnologia que estão sempre em evolução. Nada mais inadequado para ser congelado numa ortodoxia defendida com unhas e dentes de todo questionamento intelectual. Quando essa ortodoxia é integralmente importada, sem qualquer análise crítica a respeito de sua propriedade e eficácia nas condições locais, os riscos e os custos podem ser ainda mais altos.”
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