Por Guilherme Cavalcante
Foi em meio à cena gay que despontava na São Paulo do início dos anos 90 que um sobrenome começava a ganhar destaque: mesmo com pronúncia e escrita pouco familiar, ‘Herchcovicht’ acabou parando na boca de todo mundo que apreciava um bom corte e moda com atitude, logo depois que drag queens famosas da cidade passavam a desfilar com vestidos estonteantes, que chamavam atenção da República aos Jardins nas noites da Paulicéia. Por trás do sobrenome, estava um jovem Alexandre, que aos poucos revelou ter domínio sobre a própria criação e, com pé no chão, estabeleceu-se como um dos estandartes do mercado de costura brasileiro. Com os anos, Alexandre amadureceu o próprio trabalho.Foi do gueto que seu trabalho alcançou o mainstream. Virou marca de sucesso, referência brasileira no mercado mundial, do prêt-à-porter à haute couture. A influência punk, os tecidos rasgados e as cores sóbrias que marcaram o início de seu trabalho hoje dão espaço mais à sustentabilidade. Atualmente à frente da direção criativa da marca ‘À La Garçonne’, Alexandre Herchcovitch fez história em marcas como ‘Zoop’, ‘Rosa Chá’ e a que leva seu nome, que vendeu após quase duas décadas de atuação. Ele esteve em Campo Grande na última semana para um talk show promovido pelo Sebrae-MS, no qual falou sobre empreendedorismo e o mercado fashion no país. Em entrevista ao Jornal Midiamax, o estilista revisitou a carreira, falou sobre economia e opinou sobre as influências da internet no mercado. Confira!
JORNAL MIDIAMAX – Que realidade o empresário de moda enfrenta no mercado brasileiro?
ALEXANDRE HERCHCOVITCH - Em geral, o Brasil tem muitas pessoas que encontraram na moda um meio de fazer dinheiro e de empreender. Dentre todas essas pessoas tem aquelas que têm vocação, que de fato são criadores e que tem uma ideia para passar e tem aqueles que simplesmente gostam de moda, que são simplesmente confeccionistas, empresários. Eu não estou qualificando ninguém, tá? Estou descrevendo os perfis que existem. Enfim, com todos esses perfis de pessoas querendo fazer roupa, fazer moda, hoje a gente tem uma infinidade de empresas de moda no Brasil, e todas elas com esse objetivo de venderem, de serem conhecidas, etc. Muitas delas fazendo a mesma coisa. Isso é o que acho que, atualmente, é o mais complicado na moda, que é muita gente fazendo a mesma coisa. A informação, hoje, está para todo mundo. Você vê um desfile de moda em tempo real pela internet, então é muito mais fácil e tentador você olhar um desfile e fazer igual... Então, é uma coisa meio desleal. Por isso, quem se diferencia e faz uma moda mais autoral costuma se diferenciar e ter mais espaço, porque as pessoas estão cansadas de consumir a mesma coisa. Elas se cansam, elas não curtem mais essa massificação. Um dos caminhos hoje é seguir uma moda autoral, que é uma matemática complexa. Acho que quanto mais você seguir a sua intuição e a sua história particular, o que é diferente em cada um, você consegue fazer algo diferente.
A moda dialoga muito com cultura e identidade. Existe algum aspecto da moda brasileira que é subaproveitada? Algum aspecto cultural que não é refletido nesse mercado?
Não, acho que todo mundo aproveita bem. Não só na moda, mas em todas as áreas, como a gastronomia, TV. O Brasil é muito rico, então a gente acaba tendo uma outra discussão. São muitas fontes de inspiração, nossa cultura permite isso, a gente se alimentar das próprias características. E na moda, temos profissionais que são brasileiros, que conseguem extrair do Brasil o que ele tem e produzir algo que seja efetivamente brasileiro. Mas disso eu faço uma pergunta: o que é, realmente, fazer algo brasileiro? Para mim, isso acontece pelo simples fato de quando o produto é feito por alguém que é brasileiro. Todo mundo, a vida inteira, me perguntou qual era a minha preocupação de incluir o Brasil nas minhas criações. E eu sempre respondi que não tinha nenhuma preocupação, porque eu sou brasileiro, minha roupa é brasileira. Não vou forçar regionalismos ou folclore na minha roupa. Eu nasci em São Paulo, sou paulistano e brasileiro. Minha produção artística é fruto do meu meio. E meu meio é o Brasil. Então eu nunca tive essa preocupação, entende? De ter que me reafirmar como um criador brasileiro. Minha roupa é daqui, porque eu nasci aqui e faço roupa aqui.
Crise não é novidade para quem atua no mercado da moda. Houve vários momentos na história recente do Brasil em que os empresários enfrentaram os reflexos da recessão. Uma história que me marca muito é a da própria Glória Kalil, que de industrial se reinventou como jornalista e consultora. Como essa crise mais recente te afetou?
Minha resposta é a criatividade. Há um ano e meio eu não mais trabalho na marca Alexandre Herchcovitch [Alexandre fundou a marca e a vendeu após quase duas décadas, porém, até fevereiro de 2016, atuou à frente da grife como diretor de criação. Atualmente, ele dirige a ‘À La Garçonne’, de seu marido Fabio Souza] e trabalho hoje numa empresa menor, infinitamente menor, mas que está crescendo muito. Nela, eu trabalho com reuso, sustentabilidade, ressignificação das roupas e tudo mais o que eu conseguir aproveitar. É um assunto que eu nunca tive muita oportunidade de trabalhar na marca anterior. Na ‘À La Garçonne’, que sempre falou disso a vida inteira, eu estou tendo oportunidade de mergulhar nesse mundo. Isso me deu muita liberdade de ser criativo, de refazer roupas que já existem, trabalhar com tecidos antigos... Eu acho que toda essa liberdade criativa resultou numa produção que está sendo produzida e consumida. Minha resposta pra crise, portanto, foi ter agarrado essa oportunidade e me reinventado, de uma certa maneira.
A sua experiência nesse mercado é marcada por duas atuações, a de criativo e a de empresário. Quando você vendeu a ‘Alexandre Herchcovitch’, por exemplo, você passa a se dedicar mais à criação. Porém, antes você também era o administrador da empresa. Existia algum conflito nisso? É necessário fazer alguma distinção em algum momento?
Olha, eu forçadamente tive que por muitos anos ser os dois, tanto a pessoa criativa como aquela que fechava negócios. Isso foi um aprendizado que só desenvolveu habilidades. Quando a marca foi comprada, a minha função tornou-se apenas a parte criativa, e eu deixei a empresaria para a nova dona da marca. Porém, eu nunca deixei de ter a cabeça de empresário, mesmo sendo só o diretor criativo: na hora de decidir por um gasto, por uma ação de marketing, meu lado empresário sempre apareceu, porque já tinha sido 15 anos como estilista e empresário ao mesmo tempo. Hoje eu não consigo pensar com a cabeça de só um dos dois, qualquer coisa que eu faça está lá o criador e o empresário.
O profissional que for enveredar por esse ramo tem que saber equalizar esses dois perfis?
Sim, precisa, principalmente no começo. Mas ele também tem que saber que isso pode ser feito numa parceria, futuramente. O estilista ser um empresário é bom, mas acho que tem que funcionar como uma dupla, assim que ele tiver condições de custear isso. Tem que ter duas cabeças, o criativo e o administrador...
Yves (Saint Laurent) e Pierre (Cardin), alguma coisa semelhante?
[Pensativo] Ah... Não é à grandes duplas na moda. Eu acho que no começo é muito difícil você contratar um administrador, alguém que dê esse apoio no começo. Mas, com o passar do tempo, essas duas mentes têm que ser duas.
Você tem alguma opinião sobre a qualidade de formação dos estilistas que saem das universidades brasileiras? Esses profissionais estão antenados com o mercado?
Tem um vão entre o que acontece dentro de uma faculdade de moda e o mercado. Várias instituições tentam minimizar essa lacuna. Trabalhei anos no Senac e meu papel era aproximar o acadêmico à realidade. Mas é que a mão na massa, o dia a dia, ele ensina muito, complementa aquilo que a gente aprende na faculdade. Diria que os estudos são o começo, que dão um indicativo, os caminhos. É muito importante. Mas, há diferenças da prática para a faculdade. O que me preocupa nesse assunto é que hoje tem muito profissional saindo para um mercado que não tem como absorver. Eu não sei se há tantas vagas.
Hoje a moda tem uma forma mais dinâmica de ser divulgada. Como você falou, um desfile é transmitido pela internet em tempo real. Mas, além disso, há outras linguagens, dentre elas, as blogueiras fashion, que são trend setters, digital influencer, uma nova forma de marketing que nem sempre é muito leal, é muito... remunerada. Na sua opinião isso atrapalha ou ajuda?
Não atrapalha... Na minha opinião, o internauta vai escolher as pessoas que segue. Ninguém está fazendo eles engolirem o produto, até porque existe a opção do unfollow. Realmente, isso é uma profissão. Eu também recebo para divulgar produtos. Eu tenho basicamente só o Instagram, mas quando me pedem para promover algo, eu digo que tem que ser do meu jeito, discretamente e só se eu acredito no produto. Como não é a minha principal fonte, eu consigo fazer isso. Mas conheço muita gente que a principal fonte de renda é divulgar produto nas redes. Às vezes, é claro, elas se perdem. Mas, sempre existe a opção unfollow.
Você começou a carreira pelo undergroud, vestindo travestis e drag queens da cena gay de São Paulo. Hoje a gente tem um boom cultural dessa cultura queer, é como se aquele universo escondido do qual você emergiu tivesse virado mainstream. Você sente uma sensação de Déjà Vu?
Não, pelo contrário. Hoje todo mundo está falando sobre isso, principalmente sobre gênero. Quer dizer, hoje já não existem só dois gêneros, mas ‘n’ gêneros e é claro que isso se reflete na roupa. Eu penso que o que eu vivo hoje é um pouco do resultado de vários momentos da minha vivência anterior, quando grupos se impuseram, deram as caras e foram corajosos. Eu acho que a cultura drag é uma expressão artística genuína, com características do masculino e feminino, uma coisa muito legal e muito livre. Hoje se discutem muitas coisas nesse sentido, mais que há 20 anos, e acho que isso é ótimo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário