João não é João. José não é José. Mas pela situação psiquiátrica dos dois pacientes, o Lado B não pode identificá-los. Eles não respondem por si e tem momentos em que perdem a consciência até disso. Por outro lado, a narrativa é convincente, de tão rica em detalhes embasados na realidade.
"A esquizofrenia se caracteriza pela desorientação do pensamento. São os sintomas: confusão do pensamento, alucinação e delírio, perda da vontade de fazer coisas e perda da afetividade", descreve a terapeuta ocupacional Tânia de Lázari Sanches Pinheiro. Para mim, é um dos piores transtornos mentais", completa. Tânia é especializada em saúde mental e há 20 anos trabalha no Nosso Lar.
No ateliê e por todo hospital, paredes exibem obras de arte, talentos revelados na terapia desde o final da década de 90. A intenção nunca foi a de ensinar e sim fazer com que pacientes se beneficiem através da pintura. "Eles vão pintando e isso vai tirando as coisas deles. A gente acredita que assim extravasa o que tem por dentro e não consegue falar", explica Tânia. Nos últimos quatro anos é que a atividade ganhou espaço físico, um dos prédios do anexo do hospital.
João, 45 anos e um nome assinado quatro vezes
"Esses são os meus nomes. Este do ambulatório eletro, este foi o que assinaram primeiro. Godyear General Motors e Anjo Gabriel, que sou eu.
Esse desenho significa Casa da Liberdade. É uma casa com árvore com frutas e uma terrinha para plantação. Plantar alface, alguma coisa e uma casa para morar sem grade e uma janela sem grade. Por que? Porque eu me sinto preso aqui dentro, me sinto preso e eu não fiz nada que denegrisse a minha imagem. Nunca roubei uma moedinha de ninguém.
Se eu tomo remédio? Para osso. Segundo o rapaz disse, eu tenho mais de 18, de 39 anos de osso...
Terapeuta: - "Não João, o que ela quer saber é o que você sente quando desenha", interrompe Tânia.
João: - "Mas ela perguntou pra mim... Liberdade. Eu Sou Godyear, aqui está meu documento na minha cabeça do CMO. Esse corpo meu foi levantado no CMO, porque a Nair do ambulatório não queria dar meu corpo que foi trazido pelo Exército Americano. Ela segurou meu corpo e prendeu minha vela do anjo Gabriel na máquina".
A fala é firme, não há pausa maior que a vírgula entre uma frase e outra e na entonação, a certeza de se descrever como um deus. Godyear: 'God vem de Deus e Y do Exército Americano e "ar" porque eu fazia tudo a ar. Não era para ter petróleo, querosene, nada disso. Até hoje eles voam com o ar Godyear. Os Estados Unidos da América crêem em mim".
Entre o delírio e a verdade, João responde que frequenta o Nosso Lar desde 1990, uma sequência de internações constantes e antes que a próxima pergunta chegue, ele age como se soubesse e antecipa. "Eu não tenho nenhuma loucura. O neurocirurgião da Santa Casa olhou meu olho assim com aquela lanterninha e não viu nenhum defeito mental ou qualquer coisa assim. Então não existe doença", argumenta.
De volta ao desenho em mãos, feito à lápis de cor, João diz que a pintura não reflete seu sonho. "Onde eu gostaria de morar? Eu gostaria era de morar numa mansão, mas aqui é uma casinha simplória, com arvoredo, que você sai para trabalhar, chega e tem em casa descanso e proteção. Olha, segundo reza a história, diz que eu era pintor mesmo, que era muito rico quando pintava. Criei meus filhos na Moreninha 3, no Estrela do Sul, no Silvia Regina, em Campo Grande inteira e aqui no ambulatório eu cuido também".
A conversa, quando não interrompida pela terapeuta que traz João à realidade das perguntas, revela uma narrativa que consegue se desvencilhar da linearidade para outro extremo. No entanto, quando é a vez de José falar, João respeita, mas só pede para Tânia frisar o recado.
"Tia, tia, fala que o dinheiro que entra é revertido para o hospital. Tem que falar", pede o paciente para a terapeuta. Tânia afirma que sim, que já vai explicar. "50% é para eles e 50% fica para o ateliê, para a compra de material, de tela, de tintas".
José, 33 anos. Longe da crise, está na fase mais perigosa do transtorno
"Eu tô com 5 mes aqui. Vim pra cá, porque queimei a minha casa. Por que? Não sei. Eles trocaram meu remédio lá e eu fiquei louco", conta. As palavras não trazem um convencimento tão grande, mas são o que de fato aconteceu. Talvez por vergonha, a voz não saia tão firme como quando são delírios que eles insistem em dizer como verdade. A confirmação vem da terapeuta. José está lá a mando da Justiça, por ter incendiado a própria casa.
"Esse desenho de flor representa muita coisa na minha vida. Representa uma menina. Que menina é essa? Qualquer uma, é que assim eu nunca saí com uma mulher. Então pode ser qualquer uma. Nunca tive oportunidade, não sei por que", traduz. Em mãos, José tem uma sulfite e o desenho feito com os dedos, de tinta guache.
A inspiração de José é construída. Ele não chega e sente o que quer desenhar no ateliê. "Eu já venho pensando". O diagnóstico é de conhecimento dele, assim como o tempo de internação. "Esquizofrenia. Não, não é a primeira vez que estou aqui. É desde 2004".
Nisso, João interrompe para dizer que a doença não existe. "Que eu saiba, pela psique mesmo, esquizofrenia não existe".
José retoma, descartando a hipótese levantada pelo amigo, para dizer o que quer. "Sabe por que eu fico nervoso? Não consigo nenhum trabalho, quero trabalhar de servente, eu era pedreiro".
Mesmo medicado, a terapeuta explica que esquizofrênicos não conseguem seguir uma rotina de trabalho. "Eles não conseguem ter expectativa, plano e sequência. Acorda, vão trabalhar mas não dão a continuidade que a gente tem. E não é porque não tenham capacidade de fazer aquilo, é que não conseguem levar adiante".
"Você vê a confusão?", pergunta Tânia. "O José tem consciência de que tem alguma coisa, porque quando estão em crise, ele falam que não tem nada. Hoje, este momento de consciência é o mais perigoso da doença, onde é muito mais fácil dele se matar", aponta.
A conversa termina. João e José seguem para o almoço e agradecem mais de uma vez a oportunidade de falarem, ainda que seja de suas fantasias.
"Eles criam uma situação em cima de um fato real e o que faz com que eles não tomem a medicação, é porque não se sentem doentes", detalha Tânia.
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