terça-feira, 8 de dezembro de 2015

Para arquiteto, profissionais não podem sair da universidade sem saber lidar com o patrimônio


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Dos novos aos antigos, os prédios urbanos contam histórias a quem passa pelas ruas da cidade. Cada tijolo acaba sendo um elemento que remete à memória de um povo e por isso, podem ganhar importância. Nesse contexto, o patrimônio histórico ganha destaque, mas como a parte mais vulnerável da equação, isso porque, nas cidades brasileiras, há pouco reconhecimento dos bens que, em diferentes épocas, ajudaram a sedimentar a identidade cultural dos habitantes de uma lugar. Para comentar essa questão, o Jornal Midiamax conversou com o arquiteto e urbanista Fernando César Pires Batiston, que desempenha a função de chefe da Divisão de Patrimônio do Planurb (Instituto Municipal de Planejamento Urbano). Na entrevista, Batiston aponta os mecanismos de proteção do patrimônio urbano e também comenta sobre a relação do campo-grandense com os prédios que representam a própria história. Confira.

Por: Clayton Neves e Mikaele Teodoro
Fotos: Marithê Lopes

Qual é a importância da memória e do patrimônio histórico no contexto das cidades?
A importância da memória é que ela é única e é um dos recursos para se compreender uma sociedade. E essa memória está refletida sobremaneira no patrimônio histórico. Veja, muita gente pensa que patrimônio são apenas os palácios. A gente olha no Rio de Janeiro e tem aqueles palacetes, prédios suntuosos, enfim, a gente acha que só aquilo é patrimônio. Não, aquilo é o patrimônio de um determinado estrato social, de uma determinada época. Mas, durante essa época, viveram também pobres, negros, segmentos subalternos da sociedade. E essas pessoas também produziram a cultura. O que quero dizer é que durante muito tempo se acreditou que o que deveria se conservar eram apenas coisas dos estratos dominantes. Todavia, atualmente, entendemos que o patrimônio tem que refletir a sociedade como um todo. Muitas vezes as pessoas falam: 'ah, isso é uma coisa velha, isso está caindo aos pedaços'. Isso é óbvio. Não existe um patrimônio que tenha um certa idade sem que tenha experimentado a ação do tempo. E as pessoas muitas vezes não entendem o valor que isso reflete na memória. É um processo difícil, pois a sociedade só sente a importância quando o prédio cai no chão e ninguém faz nada. É uma parcela muito pequena da população, por exemplo, que vai cobrar da Câmara Municipal a aprovação das leis que protegem o patrimônio e, consequentemente, a memória.
Como podemos aproximar as pessoas e fazer com que elas se identifiquem com esses bens culturais?
Na verdade, esta é uma questão extensa, pois todos nós temos como contribuir com a preservação do patrimônio de determinada forma. Podemos começar pela própria imprensa. Se, por exemplo, nós tivermos reportagens a respeito do tema, que tragam informação a pessoas, procurando informar e não apenas reportar um fato quando cai alguma coisas, mas produzir matérias de forma educativa. Essa é a questão da imprensa. Já o cidadão comum, quando vir alguma obra sendo demolida, ele pode realizar denúncias nos órgãos competentes, como o próprio Planurb. A Prefeitura também desempenha um papel nisso, promovendo a fiscalização, o cuidado com o patrimônio, cuidando para que haja orientação e também denunciando a outros órgãos competentes.
Quais órgãos têm sido parceiros da Prefeitura na proteção ao patrimônio histórico?
Além do Planurb (Instituto de Planejamento Urbano de Campo Grande), o Ministério Público Estadual tem sido extremamente operante e tem estado bem alerta e sensível quanto a questão do patrimônio. Há também os órgãos de proteção, como o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) e até mesmo a Fundac (Fundação Municipal de Cultura). O Iphan é um grande parceiro da Prefeitura nessa luta, agindo sempre de uma forma muito afinada.
(Marithê Lopes)(Marithê Lopes)



A cidade está em expansão. Dá pra aliar o novo, o que está surgindo, com a nossa memória de uma maneira harmoniosa?
Depende do ponto de vista e da situação. Nós temos uma região aqui em Campo Grande que é chamada de ZEIC (Zona Especial de Interesse Cultural). O que é isso? Bem, delimitou-se uma área na qual contém uma grande concentração de prédios históricos antigos para que fosse, caso a caso, analisada a possibilidade ou não da demolição, da alteração dessas edificações. Se o imóvel estiver na ZEIC, qualquer intervenção nele precisa passar pelo Planurb para ser aprovada. Vou te dar um exemplo: tem um prédio no centro da cidade, dentro da ZEIC e pediram para fazer alterações nele. Daí, nós fazemos uma vistoria no local e registro fotográfico, independente do prédio ter ou não importância. Então, se for autorizada a demolição desse prédio, fica-se o registro daquela edificação, de forma que posteriormente alguém pode fazer algum estudo urbanístico e lá estará o registro. Afinal, nós lidamos com a memória. Caso se detecte alguma importância arquitetônica ou histórica daquela edificação, as diretrizes são no sentido de preservação. Colocamos, por exemplo, que a parte externa deve ser preservada, no nível de fachada, telhado, vãos, ornamentos etc.
Como funciona a ZEIC?
Basicamente, essa região tem restrições, e alguns prédios em especial tem uma restrição maior. Mas, no geral, há muitos casos em que é possível demolir e construir, conforme determina a lei, como em qualquer outro lugar da cidade. O problema surge quando o proprietário de um bem protegido acha que pode demolir, alterar, fazer o que ele quiser. O poder público pensa assim: o bem, o tijolo, a argamassa, o material, enfim, ele pertence ao proprietário. Mas, a paisagem pertence à população, à sociedade, cujo direito se sobrepõe ao particular, cmo preconiza a Constituição Federal e o Estatuto das Cidades=. O dono daquele bem, então, em função do benefício da coletividade, é obrigada a mantê-lo. É aí que se fundamenta o patrimônio, é aí que a gente tem como exigir que o proprietário cuide e mantenha em bom estado o patrimônio. E a ZEIC ajuda a proteger isso.
Qual a penalidade para quem não obedecer?
Estamos falando de legislação, então, quem desrespeitar pode ser multado. Nós temos até casos de pessoas que demoliram e tiveram que reconstruir o bem, já houve três casos assim em Campo Grande e parece que tem mais dois em vias de acontecer. Dentro da ZEIC, os proprietários sabem que eles estão em uma área complicada, mas muitos deles fingem não saber e derrubam o bem. Nós tivemos, por exemplo, na Rua 14 de Julho, um prédio que foi demolido em um domingo de Carnaval. Como era feriado e a fiscalização não estava trabalhando, o dono aproveitou-se da paralisação do serviço público para efetuar um ato ilícito. Resultado: tiveram que reconstruir. Depois disso voltou e está tudo legal. Quer dizer, legal, não, já que deixou de ser um bem original, o que é lamentável. Porém, essa reconstrução funciona como uma medida socioeducativa, para que as pessoas entendam que se elas demolirem, estão passíveis de ter que reconstruir. E isso vai ser muito caro, porque aquela tecnologia da época não existe mais. Mas, a questão é esta: estes exemplos acabam disseminados por outros proprietários e podem gerar uma certa obediência em função do próprio medo de que isso venha acontecer com eles também.
Quais critérios definem uma determinada região como propensa a uma maior proteção?
Na verdade, em Campo Grande, zona nós só temos a ZEIC, que é onde a cidade começou a se desenvolver a cidade e onde se notam mais prédios com importância arquitetônica, histórica e cultural. Ela é delimitada, forma um polígono, porque ali surgiu o primeiro adensamento urbano. E nessa área, à medida em que essas edificações começam a rarear, é onde o polígono da Zeic é interrompido. Porém, veja que em Campo Grande há outros prédios que não estão no polígono da ZEIC, mas que são bens com interesse cultural. Um exemplo é a comunidade Tia Eva. Olha só, você vê que não é um palácio, mas um bem que vem representar uma sociedade quilombola. Não está na Zeic, mas é protegido mesmo assim.
A ocupação do patrimônio histórico é um meio de preservar?
Certamente. Vou te dar um exemplo: supondo que eu seja o proprietário de um imóvel e feche essa bem, uma casa, e não deixe ninguém morando nela, como essa casa vai estar daqui um ano? Vai estar completamente desgastada, porque ninguém limpa, ninguém conserta alguma coisa. Ela vai começando a decair. O segundo momento, possivelmente, seria a invasão: abrem a casa e começam a entrar, comumente andarilhos e consumidores de drogas, que começam a fazer daquilo uma morada. Houve um incêndio recentemente na Avenida Calógeras em que houve exatamente isso. Uma casa estava fechada e um usuário de drogas pulou dentro e começou a utilizar o espaço para consumir entorpecentes usando cachimbo, e isso fez com que a casa pegasse fogo. Quer dizer, esse é o tipo de coisa que acontece quando não se tem ocupação. Quando você ocupa, quando você zela, o processo de degradação do bem é muito mais lento. Portanto, o promover uso é fundamental ao patrimônio.
"Quem lida com o patrimônio é movido por uma paixão", diz Fernando Batiston (Marithê Lopes)"Quem lida com o patrimônio é movido por uma paixão", diz Fernando Batiston (Marithê Lopes)



Culturalmente, os sul-mato-grossenses tem identificação com o patrimônio ou ainda é um sentimento que precisa ser desenvolvido?
É muito complicado responder isso, mas eu acho que o campo-grandense tem laços afetivos. A grande pergunta, portanto, é se ele sabe disso. Nós temos laços afetivos com a terra, com os bens, mas, historicamente, o campo-grandense visa o progresso, a modernidade, elementos que muitas vezes implicam na negação do passado. Infelizmente, está é uma característica do modernismo que acaba afetando a forma como as pessoas encaram o patrimônio. Começam a ver como uma coisa velha, uma coisa antiga. Mas sempre que ocorre um desabamento de alguma coisa, de algum bem, percebo que as pessoas lamentam o fato, o sumiço daquele patrimônio. Para mim, essa pergunta remete a uma dicotomia do próprio campo-grandense: é a briga entre o moderno e a memória.
Há uma deficiência na formação dos arquitetos para estimular a consciência com o patrimônio dentro do próprio mercado?
Primeiro, tenho que destacar que lidar com patrimônio histórico, paisagismo, assim como o urbanismo, são atribuições específicas do arquiteto. Isso foi determinado pelo CAU (Conselho de Arquitetura e Urbanismo), em função das grades curriculares das universidades. No entanto, grande parte das universidades não valorizam a parte do patrimônio. Eu sinto que as faculdades, atualmente, estão se projetando mais para o arquiteto padrão, que é aquele formado para construir casas. De certa forma, é ok haver essa prevalência, mas não ao ponto de se excluir outro ramo de atuação do arquiteto. Afinal, este profissional não pode sair sem essa informação da faculdade, sem saber o que é o patrimônio e que isso é uma atuação específica dele. Eu acredito realmente que falta um pouco dessa formação, porém, preciso dizer que quem lida com o patrimônio é movido por uma paixão, até porque é muito difícil lidar com ele. Eu costumo dizer que é como cuidar de uma pessoa idosa. Ela tem uma coisa diferente para comer, tem um jeito diferente de se vestir, tem uma maneira diferente pra você conduzir... Com uma edificação antiga é a mesma coisa. Ela é toda cheia de problemas, então não é para qualquer profissional pegar uma casa antiga e falar 'vou reformar'. Se você tem paciência, você pega. Se você não tem, deixa pra quem tem.

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